Neste 11 de
agosto, último sábado, também comemorou-se o Dia dos Estudantes. E como costumo
fazer nesta data, refleti sobre esta coisa de ser professor. O trabalho na sala
de aula. As escolas. Os alunos. E entre os pensamentos surgidos, me veio a memória da amizade construída, com uma
estudante, numa viagem. Uma viagem que ocorreu faz mais de vinte anos, de
ônibus, pelas estradas e rios do Pantanal. Voltei ao Pantanal, passado este
tempo todo, nas últimas férias, ou recesso escolar, em julho deste ano. Ou seja, no mês passado retornei ao Pantanal,
mas estava com meu filho pequeno e fomos de avião. A viagem agora foi rápida. E
chegando ao destino, a beleza da paisagem tomou toda nossa atenção. No passeio
feito, na primeira vez, de ônibus, por semanas, até e pelo Pantanal, o tempo do percurso favoreceu a construção de
amizades. E esta amizade surgida com a estudante naquele passeio me trouxe
novos conhecimentos. Na época, não tinha ainda trinta anos. Tinha concluído o
Curso de História e já tinha intensa militância no Partido Comunista Brasileiro
e em várias organizações comunitárias e sindicais. Era, na verdade ainda sou,
um comunista ortodoxo. E minha jovem amiga, de viagem, era uma estudante
secundarista. Devia ter quinze anos. E
era aluna do Colégio Bandeirantes, de
São Paulo. Para quem não conhece, o Colégio Bandeirantes é um dos que atendem a
elite paulistana. E seus gestores, professores e alunos sabem bem disto: são da
elite e os alunos desta escola são
preparados conscientemente para permanecer na elite, econômica, social e
cultural. Seus alunos sabem que são
preparados para governar. Governar as empresas, sua cidade e o País.
E esta jovem
amiga falou, bastante, sobre esta característica do Colégio
Bandeirantes. E sobre o impacto desta
disposição seletiva junto ao grupo de alunos. Naturalmente, o resultado deste
projeto educacional só pode ser a extrema competitividade entre os alunos. E foi
sobre este espírito que a estudante preferiu comentar. Sobre os efeitos deste
clima de disputa que colocava os alunos em categorias. Havia o grupo dos alunos
“A”, que era o dos alunos excelentes. A nata. Abaixo deles, os “quase
excelentes”, do grupo “B”, e assim por diante. A minha amiga pertencia ao grupo
“B”. Não tinha ilusão de poder ascender ao grupo “A”, mas não deixava de dormir
por conta disto. Era muito tranquila, autoconfiante e muito, muito, preparada
para o trato dos temas mais diversos. Com seus quinze anos falava de quase tudo
com conhecimento e argumentos consistentes: política, economia, questões
sociais, ambientais, culturais. Até sobre futebol. Na época eu achava o futebol alienante. Uma
bobagem, a minha, e de parte da esquerda daquele período. E a menina me deu uma
grande lição sobre a importância do futebol para o mundo e para a cultura
brasileira. Falou do futebol como paixão. Foi convincente.
Falamos também,
bastante, sobre política, filosofia, ética, estes assuntos. E era uma conversa animada pela própria diferença dos interlocutores. Eu
era um professor de história, comunista, que lecionava em várias escolas do
extremo da Zona Leste; e ela era uma estudante, com metade da minha idade, de
uma das escolas particulares mais elitista de São Paulo. E esta conversa, no
tema da ética, foi ainda alimentada por um episódio ocorrido na viagem de
volta. Do Pantanal, em Mato Grosso, tínhamos atravessado a fronteira duas
vezes. Uma rápida entrada na Bolívia e
uma outra no Paraguai. No retorno, a passagem pelo Paraguai não ficou impune. O
ônibus foi parado na estrada pela Polícia Rodoviária. Iriam revistar as
bagagens e a reação dos viajantes foi rápida. Fizeram logo uma caixinha para
subornar os guardas. Quando o passageiro coletor da propina passou pelo nosso
banco eu, pragmaticamente, não hesitei em contribuir com o grupo. Não tinha
motivos pessoais para preocupação com a revista das bagagens. O único bem que tinha adquirido na visita à Bolívia foi um estiloso chapéu
que fez algum sucesso nas brincadeiras da viagem. Tanto sucesso que foi logo
roubado numa das festas em que fomos após o retorno. Mesmo assim, colaborei com
a propina. E isto deixou minha amiga estudante do Colégio Bandeirantes
completamente indignada. A menina cobrou satisfações. Como eu, um professor de
história, comunista, cedia tão facilmente à pressão dos demais passageiros
corruptores! A menina me encurralou.
Tive dificuldade em responder. Na verdade nem me dava ao trabalho de pensar
seriamente no assunto. Com certo
pragmatismo bolchevique alheio às contradições internas e miúdas do
capitalismo, achava que a corrupção policial era perfeitamente compatível e
coerente com o próprio sistema capitalista. Um mal inerente ao sistema. Sistema
que eu combatia em outra escala. Não perderia tempo discutindo a ética pequeno burguesa de um sistema
intrinsicamente perverso. Mas a garota não ficou convencida. Sua indignação era
total e fundamentada. Seus argumentos eram racionais mas carregados de emoção.
A menina trazia aquilo que Darci Ribeiro chamava de “fibra ética” da juventude.
Hoje, passados mais de vinte anos, continuo
com meu bolchevismo voltado aos grandes combates, mas busco também
prestar mais atenção às coisas “pequenas’ mas importantes do cotidiano. Deste
curto convívio, aproveitei o conhecimento obtido para estimular meus alunos do
Ensino Médio, e mesmo do Ensino Fundamental, para que pensassem sobre quais
seriam seus objetivos com a Educação. Aquelas conversas, portanto, renderam
bastante. E neste dia 11 de Agosto passado, Dia dos Estudantes, gostaria muito de
saber para quais caminhos a vida teria levado toda aquela vitalidade estudantil
da aluna “B” do Colégio Bandeirantes.
Valter de Almeida Costa
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